Tu vieste por acaso…
Abandono emocional… não se sentir desejado…aquela sensação sempre presente de desconsolo, como se fosse um vazio, uma ausência, algo eternamente em falta… uma procura intensa de amor (ou de alguém que supostamente ame), tentar sentir-se vivo e presente no olhar dos outros…
Há palavras cortantes, que ferem, ficam gravadas para sempre… passando assim a fazer parte do nosso registo emocional; muitas vezes não pela forma como foram ditas, mas pela forma como foram escutadas (se calhar no parágrafo anterior sentiu isso…).
Quando os pais insistem em dizer aos filhos “tu vieste por acaso…“, algo que parece supostamente inócuo, pode na verdade ter um impacto doloroso e profundamente marcante na vida e na forma de sentir das crianças… como um eco que se repete infinitamente, um disco riscado…, “tu vieste por acaso…“, como se não fosses resultado de um desejo (existem crianças que assumem que não foram desejadas), como se não fosses gerado no afecto… como se fosses um acidente.
Sentir-se (ser) desejado é fundamental na construção da identidade (eu fui desejado… logo eu mereço estar aqui), quase como uma injeção de amor-próprio (ser resultado do amor de alguém, ser único)… alguém sonhou comigo… alguém me planeou… sou especial!
“tu vieste por acaso…“, foi por acaso que fui mãe/pai (será que estava preparado)?, foi por acaso que nasceste… foi por acaso que cuidei de ti… há crianças que pensam: se foi por acaso… será que fui um peso? Será que estive a mais? Será que tenho um lugar próprio e válido no coração dos outros?
É nestes casos que se pode revelar o problema. Para estas crianças nascer por acaso implica sentir-se um fardo, uma não possibilidade, como se sentissem que alguém cuidou deles só por um acaso… por obrigação!…
Para estes o afecto dos outros será por vezes entendido de forma deturpada, como um acaso, algo de não legítimo, algo fabricado, que não merecem, que não é verdadeiro, que é uma obrigação! Nestas situações o amor-próprio está ferido, e o vazio interior fá-los crescer sem se desejar, e quase todos os vínculos emocionais serão intoxicados pelo medo. Erguem-se barreiras que impedem os outros de se aproximar (estou sozinho… é a prova que ninguém me deseja… será que deixo os outros aproximarem-se?)…
Crescem assim carentes, tornando-se adultos carentes, buscando incessantemente o afecto dos outros (confundido muitas vezes com dependência).
Decorrente desta forma de pensar, sentir e viver, existem pessoas que mesmo quando encontram o afecto verdadeiro, são incapazes de o reconhecer e aceitar na plenitude, porque têm para sempre gravado na sua forma de pensar e de se comportar, aquelas palavras… “tu vieste por acaso!”. E porque sentem que tudo na vida delas acontece desta forma (por acaso), não são capazes de se valorizar, de se desejar, de se encararem como alguém único e especial, capaz de aceitar que afinal por vezes não existe nada mais maravilhoso e valioso que um simples acaso!
Rolando Andrade
Psicólogo Clínico
Psicoterapeuta
Psicólogo do Desporto
Cédula profissional O.P.P 4365