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Um dia…20 anos!

Um dia…20 anos!

“onde a dureza por vezes destrói,

a suavidade consegue esculpir”
Tagore

 

Acordo cedo. Tenho hábitos; Passo os olhos pela actualidade Mundial e analiso os artigos mais relevantes das ciências Psicológicas. Faço um pouco de exercício, confirmo a listagem de pacientes do dia e dedico tempo para reflectir acerca dos seus processos. São rotinas que me acompanham diariamente desde há muitos anos; ajudam-me a manter focado e alerta, atento a mim mesmo e ao que se passa à minha volta. Estas rotinas funcionam como uma espécie de preparação física e mental para o dia de trabalho. Tenho o hábito de cuidar sempre de mim; é importante cuidar de mim se pretendo cuidar dos outros.

Como Psicoterapeuta, faz parte do meu trabalho passar longas horas do meu dia sentado, à escuta. Escuto aquilo que me é dito, mas também me escuto a escutar o que me dizem; tento ouvir-me porque isso ajuda-me a ouvir os outros.

Para escutar, foi importante aprender a estar em silêncio. Como disse Fernando Pessoa, “é fácil trocar palavras, difícil é interpretar o silêncio”; é algo que demora muitos anos a aprender… é necessário escutar mais do que se fala, escutar para além do que se diz, falar só quando aquilo que vai ser dito é mais importante do que ficar “apenas” em silêncio… saber também ouvir o que dizemos; treinei bastante esta competência, continuo a treiná-la diariamente; requer afinações constantes do meu aparelho emocional.

Ser psicoterapeuta é um trabalho inacabado, algo que pode continuamente ser melhorado; algo em que tento melhorar todos os dias; como uma espécie de equilíbrio, há que saber distinguir e ao mesmo tempo fundir as nossas características pessoais e as competências teóricas e técnicas que se vão adquirindo ao longo dos muitos anos de formação.

Poucos considerarão esta profissão motivante…passar os dias sentado, muitas vezes em silêncio envolto e à volta dos sofrimentos e angústias dos outros. Mas para mim é aliciante e enriquecedor (nem a vejo como uma profissão, pelo menos não naquele sentido negativo e pesado com que algumas pessoas encaram aquilo que fazem na sua profissão). Pelo contrário, todos os dias são entusiasmantes, desafiantes e depertam em mim o instinto da curiosidade (algo que me dá um prazer tremendo); é quase como aquelas crianças que rejubilam quando pouco a pouco descobrem as maravilhas do Universo que as rodeia. Este é quase sempre um trabalho invisível, não há resultados rápidos; por isso a persistência é uma qualidade indispensável.  

Foram a persistência, a curiosidade e a dedicação que me trouxeram até aqui; mesmo ao fim de 20 anos, todos os dias descubro algo novo na Psicoterapia e nas pessoas; sou desafiado e posto à prova constantemente. Também me questiono muitas vezes; gosto de questionar as certezas que tenho; assim não me distraio com falsas concepções ou suposições e isto por si só pode ter um imenso poder transformador. É preciso por isso manter-me sempre alerta, porque como não há pessoas iguais, não pode haver psicoterapias iguais… é sempre um processo de reinvenção do processo.

Ao longo destes 20 anos já acompanhei muitas pessoas, por vezes até salvei a vida de algumas; Para isso tento ter sempre bem presente dentro de mim que não existem pessoas “Caixas de Pandora”, daquelas que albergam em si todas as desgraças e sofrimentos do Mundo… cada um traz consigo algo que o liga à vida, um potencial de crescimento e desenvolvimento… a semente que embora pareça seca, um dia há-de desabrochar mal caia em terreno fértil.

Também não existem pessoas “pote de ouro no fim do arco-íris”, daquelas que parecem albergar em si toda a magia e riqueza da felicidade ou do sucesso; cada um tem dentro de si dores e angústias muitos próprias, por vezes indizíveis ou escondidas atrás de conquistas aparentemente satisfatórias. Faz parte da habilidade da escuta saber sintonizar-se com cada um dos pacientes, captar as suas emissões emocionais. Existe uma certa musicalidade nas emoções humanas; dessa forma,  tal como na música, há que saber ditinguir o ritmo, a melodia, a letra e os silêncios próprios de cada pessoa.

Sei que às vezes apenas com uma frase, ou em apenas 50m, consegui ajudar alguns pacientes. Também sei que noutros casos nunca fui capaz de o fazer; é natural que assim seja… ninguém se transforma de forma mágica, com poções secretas nem fórmulas que simplificam a imensa complexidade da mente, das emoções e dos comportamentos humanos (basta pensar que existem mais conexões entre os neurónios no nosso cérebro do que estrelas na nossa Galáxia).

É difícil mudar, a transformação dói… é preciso saber tolerar a dor; por isso a psicoterapia pode revelar-se dura para o paciente e para o Psicoterapeuta.  Estou bastante atento aos processos de dependência dos pacientes em relação a mim e ao processo. Os psicoterapeutas que verdadeiramente promovem o crescimento do paciente, mantêm-se atentos a esta linha ténue que distingue a dependência e autonomia dos seus pacientes. Por vezes o melhor é mesmo deixar que o processo natural resolva o problema por si só, em vez de tentar intervir e acabar por fazer mais mal do que bem.

O sucesso do meu trabalho revela-se quando o paciente se transforma de tal maneira… que vai para sua casa, segue com a sua vida e já não necessita de mim. A psicoterapia não pode ser uma bengala nem o consultório um bengaleiro. Sinto-me realizado desta forma, quando o processo termina e o paciente recupera e continua a sua vida de forma autónoma. Sei que alguns ficam gratos para sempre, outros nunca mais se lembrarão de mim. Tenho a certeza que não ficarão indiferentes.

Não é de ânimo leve que me comprometo com um processo de Psicoterapia. Sei que me preparei bem para esta tarefa; também a minha transformação e desenvolvimento enquanto Psicoterapeuta foram um processo doloroso. Longos anos de formação teórica e prática juntamente com processos complexos de crescimento e desenvolvimento pessoal. Foi um trajecto duro e exigente, quer do ponto de vista físico, quer do ponto de vista emocional. Foi este processo em conjunto com as minhas características pessoais que me tornaram mais forte. Tive muitos companheiros de viagem; tive também professores que me alargaram horizontes. Ser Psicoterapeuta é bastante desafiante e enriquecedor, por isso encaro cada novo caso como se fosse o primeiro… cada paciente que recebo é único, de certeza nunca tive nenhum como este.

É uma tarefa que exige o máximo de mim todos os dias. Para começar exige altas doses de equilíbrio emocional e uma Saúde Mental a toda a prova. A Psicoterapia baseia-se na relação entre o psicoterapeuta e o paciente; para os dois é um processo exigente do ponto de vista emocional. Por isso tento cuidar bem de mim, física e emocionalmente, estar bem consciente de quem sou, do que quero e do que é bom para mim… mergulhar em profundeza nas emoções humanas não é algo que se faça em apneia; é preciso estar equipado com destreza, experiência e um profundo auto-conhecimento.

São várias as características necessárias. Como um Cirurgião, é preciso ter nervos de aço; contudo é necessário  também que esses nervos de aço sejam complementados por um coração sensível, atento e dedicado; é preciso ter um carácter forte, ser firme, mas ao mesmo tempo delicado; ter noção dos limites, dos nossos e do paciente; para isso é preciso ser honesto, não ter medo de errar, não ter medo de ser confrontado e muito menos de estar sujeito a um processo de constante renovação.

As angústias e sofrimentos de cada um são sempre propriedade privada (as do psicoterapeuta também); por vezes são até o bem mais precioso de cada um, guardado muitas vezes em segredo em cofres íntimos, locais seguros e bem protegidos. Quando alguém me abre esses cofres, é importante estar preparado para acolher e cuidar bem do seu conteúdo… essa pessoa deposita toda a confiança em mim; por vezes ao fazê-lo sente-se frágil, com medo, insegura, desprotegida… pequenina e assustada como uma criança acabada de nascer e revelada ao mundo. Ao longo destes 20 anos de carreira muitos desses cofres se abriram para mim; preparei-me da melhor forma que soube, tentei ser sempre o melhor que posso ser, estar sempre no melhor de mim para cuidar bem do seu recheio destes cofres; muitos dos meus pacientes recordar-se-ão de mim, também me recordo das histórias de muitos deles; a cada um deles tentei dar algo de genuíno e único, do qual pudessem retirar aquilo de  que necessitavam.  

As alegrias são na maioria das vezes silenciosas, enquanto a dor da insatisfação há-de mais cedo ou mais tarde manifestar-se de forma ruidosa; cada um é como um mundo… cada mundo é como um pequeno Universo; cada um com as suas lógicas de funcionamento, os seus projectos, os seus desejos; estes mundos têm portas atrás das quais se escondem 2 versões de nós: aquele que se deseja ser, e aquele que se é (ou sente ser) na realidade. Saber qual das versões é verdadeira (a do desejo ou a da realidade) é um trabalho de persistência (perseverança, constância, firmeza). Não há espaço para ceder ao medo… e às vezes é preciso ter ajuda…para pedir ajuda é preciso reconhecer (voltar a conhecer) que somos frágeis… para isso é preciso ter coragemÉ preciso ter um foco, e não ceder ao (su)foco dos medos. Como disse Vigostsky, “é através dos outros que nos transformamos em nós mesmos”.

Como eu costumo dizer, os pacientes também fazem os Psicoterapeutas, por isso sem aqueles que confiaram em mim, não teria oportunidade de me sentir realizado com o que faço e da forma que faço. Ao longo destes anos, já passaram muitas pessoas pelo meu consultório; cada um trouxe uma natureza única ao processo e cada um deles contribuiu para a minha forma única de ser pessoa e psicoterapeuta.

 

Rolando Andrade

Psicólogo Clínico

Psicoterapeuta

Psicólogo do Desporto

Cédula profissional O.P.P 4365

 

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