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Filhos da Depressão

Filhos da Depressão

Imagine que tinha nascido num planeta diferente; este era um planeta sombrio e escuro, onde poucas vezes teria oportunidade de ver o Sol; mesmo nessas raras oportunidades parecia existir sempre algum nevoeiro, daquele que consegue tapar ou retirar alguma da força aos raios de sol;

Imagine também que os habitantes desse planeta sorriem poucas vezes, têm um ar triste, cansado e preocupado; para eles bastante frequente isolarem-se ou interagirem pouco uns com os outros… também costumam sentir-se sozinhos.

Nesse planeta o optimismo é um conceito estranho, que as pessoas parecem não entender, porque na verdade interpretam a realidade à luz dos seu próprio estado e por isso mesmo o pessimismo é o filtro emocional dominante; desta forma perspectivam o futuro de forma negativa, quase como se estivessem presos num turbilhão do qual não conseguem sair, embora você, que é um simples observador, possa achar que é fácil sair, que basta para isso “saber reagir”.

Imagine que é uma criança e que nasceu neste local. Habitar ali é, por vezes, assustador, pode ser um ambiente inseguro para uma criança, porque neste planeta, os adultos parecem absorvidos emocionalmente por algo que é vivido de forma muito pessoal e que só eles parecem entender; “ninguém sabe o que estou a passar” dizem muitas vezes, como se também os adultos se sentissem inseguros e assustados por esta força que os domina e não conseguem controlar; chamam-lhe muitas vezes “vazio”, referindo-se ao que sentem mas não conseguem descrever. Sem se darem conta, quando lhe chamam “vazio”, já estão a descrever o que sentem; é como se não sentissem nada, ou pelo menos nada do que desejavam sentir.

Continuemos a viagem por esse planeta, onde é frequente os adultos terem mudanças de humor, ou reacções impulsivas, pedir que não os incomodem, que os “deixem em paz”; também é habitual chorarem, mesmo que aparentemente você, que é só um visitante deste planeta, não veja motivos para isso; dizem eles que a tristeza vem de dentro, que não sabem o que têm, que nada os deixa felizes. O que terão lá dentro?

Estes adultos nem sempre estão disponíveis para brincar com as crianças, e quando o fazem, parecem não sentir prazer nenhum, porque “nada lhes interessa ou motiva”.

Também dizem muitas vezes não ter auto-estima e que nada que nada os satisfaz, nem mesmo aquelas coisas de que antes retiravam prazer; as crianças deste planeta por vezes sentem-se sozinhas e incompreendidas, às vezes acham que os adultos não estão disponíveis ou não gostam delas; perguntam-se muitas vezes se nas outras casas, onde moram outros adultos e outras crianças “também será assim?”….

Lentamente, estas crianças começam a desenvolver um medo estranho, um medo diferente, porque não é de nenhum monstro, de bandidos ou do escuro (os medos que as crianças dos outros planetas têm); é um medo que assusta muito, porque não sabem de onde vem, mas parece que não se consegue ter nenhuma espécie de controlo sobre ele… aos poucos estas crianças percebem que esse medo começa a ganhar forma e pode ser definido: têm medo de ficar como estes estes adultos. Algumas delas também sentem coisas estranhas, uma espécie de culpa que os leva a questionar-se se os adultos estão assim por sua culpa.

Perguntam-se muitas vezes se nas outras casas também será assim, se os seus amigos da escola também vivem num planeta semelhante a este, confuso, onde muitas vezes quando se questionam os adultos sobre o que têm, estes respondem, “não é nada, ja passa”, ou então nem sequer respondem ou só encolhem os ombros. Que “nada” será este que parece interferir com “tudo”? 

Os adultos deste planeta usam palavras estranhas, como antidepressivos, ansiedade, angústia, insónias, baixa auto-estima, depressão; também vão muitas vezes aos médicos e tomam medicamentos que as crianças não podem mexer nem engolir, “são coisas de adultos”… será que quando for grande já poderei engolir esta espécie de pintarolas que os adultos engolem?

Só que as crianças percebem, têm uma intuição fantástica. Muitas vezes é ela que os protege,  desde bebés que conseguem interpretar sinais corporais, perceber expressões faciais ou distinguir diferentes entoações no timbre de voz… é impossível esconder das crianças quando se está triste, preocupado, irritado, ou com vontade de chorar. Como em tudo, quanto mais se tenta, esconder, mais se revela.

Este cenário pode ser tão confuso e assustador que algumas destas crianças nunca conseguem viver em planetas diferentes. Habituaram-se, acham que o esperado é viver ali; outras acompanham os adultos na sua tristeza de tal forma, que a tristeza passa a ser um dos códigos principais da sua linguagem emocional… 

Outras crianças, quando crescem, conseguem viver em planetas diferentes, onde parece haver mais sol, mas optimismo, mais perspectivas optimistas acerca do futuro; mais tarde olharão para trás com a sensação que tudo começa a fazer sentido na sua cabeça e que aquele planeta era apenas o lugar onde habitavam, mas que existem planetas diferentes, de vários tipos, e às vezes é até possível viajar entre planetas.

De uma forma ou de outra todos ficarão para sempre com a marca indelével de terem crescido assim.

Se acha este planeta que lhe pedi que imaginasse é estranho, saiba que pode estar mais perto de si do que imagina, pode até já viver nele, conhecer alguém que viva, pode ser a casa de alguém da sua família, de um vizinho, um amigo, dum atleta ou de alguém famoso… afinal pode ser apenas a casa ou vida de uma das crianças que crescem nos milhões de casas em todo o Mundo onde mora alguém a quem a Depressão retirou a capacidade de se sentir feliz.

Rolando Andrade

Psicólogo Clínico

Psicoterapeuta

Psicólogo do Desporto

Cédula profissional O.P.P 4365

 

2 Comments
  • Susana Vasconcelos Alves
    5 August, 2022 at 15:44

    Adorei o artigo.

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