De Ninguém…

De Ninguém…

 

Curioso como existem coisas que dizemos e que podem ter significados e impactos emocionais diferentes nas outras pessoas, consoante as experiências de vida que elas tenham…

“Eu não sou de ninguém…!” é uma dessas coisas. Para uns será uma afirmação de liberdade e autonomia individual (Não sou de ninguém! Ninguém é meu dono!); para outros este é o seu pior pesadelo… não ser, não se sentir de alguém (e por consequência não se sentir alguém merecedor da atenção e amor dos outros).

Para estes, “não ser de ninguém” carrega a representação última dum mundo que as feriu (porque não lhes proporcionou o que pretendiam ou da forma que pretendiam, o que achavam que mereciam, o que sentiam que precisavam) deixando-as amarguradas, por vezes silenciosas (silenciadas), escondidas, culpabilizadas e quem sabe até com desejo de vingança.

A experiência pessoal de se ter sido (sentido) emocionalmente abandonado e magoado, é como um perfume desagradável… incomoda, irrita, afasta, é desconfortável, gera sensações negativas, nunca se esquece… como uma cicatriz que a toda a hora nos recorda que algo de traumático aconteceu… e por isso, pensamos nós, pode voltar a acontecer.

Quem já foi (ou se sentiu) magoado desta forma, sabe que a primeira reacção (a instintiva) é a defesa, “essa pessoa nem era assim tão importante”, “talvez volte”, “ainda bem que se foi embora”, “não sou muito dado a sentimentos”…

No entanto, as máscaras atrás das quais se escondem os comportamentos defensivos são muitas, e nenhuma é tão poderosa como a negação da dor do abandono; “estou bem melhor assim”; “não preciso das pessoas para nada”, “a partir de agora nunca mais me vou entregar a ninguém”! (mas também nunca mais se vai permitir viver determinado tipo de coisas)… o mundo ficará desta forma incompleto…

A negação da dor emocional é como uma essa espécie de bunker onde alguns se escondem, “nem quero pensar nisso”, principalmente aqueles para quem a dor do abandono foi tão forte, doeu tanto, que a única solução que encontram é fazer de conta que não doeu (mas dói… e continuará a doer)…

Os que se tentam esconder da dor (não adianta fugir, a dor está dentro de si, não fora), renunciá-la, afastá-la, condenam-se (pensam eles que se protegem) a não sentirem o que sentem, a renunciarem a uma parte de si tão valiosa como todas as outras. No fundo abandonam-se a si mesmos! (tal como alguém supostamente fez com eles).

Renunciando à dor perde-se assim a capacidade de a entender, de a aceitar, de deixar de sentir raiva ou culpa (será que fiz alguma coisa errada?) e sobretudo de perceber que se é perfeitamente capaz de continuar, apesar desse abandono… (se calhar o abandono nem dependeu de si)…

Outros ao invés de negarem a sua dor, limitam-se a funcionar numa lógica de espelho, numa espécie de cá se fazem, cá se pagam… (se fui abandonado por alguém que valorizava no passado, então a probabilidade de isso voltar a acontecer é grande… por isso o melhor é manter-me à defesa, ou nem sequer me voltar a relacionar de forma tão profunda). Para não repetir o sofrimento do passado, nunca mais me vou permitir viver as coisas que sempre desejei… ser amado, respeitado, sentir-me de alguém…

O trauma do abandono emocional (sentir-se de ninguém) tem impactos devastadores (quanto mais valorizada for a pessoa que abandonou, por exemplo os pais, mais fortes serão esses impactos), levando muitas vezes as pessoas abandonadas a vidas de sofrimento, desespero e medo. Em alguns casos estas pessoas acham-se merecedoras do abandono, vivem na culpa, na mágoa, mas acima de tudo na incapacidade de verdadeiramente se entregarem em futuras relações… tornam-se assim incapazes de voltar a ser/sentir-se de alguém…

Nestas circunstâncias é normal sentir-se de ninguém, “ninguém me valoriza”, “ninguém me ama verdadeiramente”, “ninguém me dá o que verdadeiramente preciso” (ou então sou eu que não me permito sentir o que me dão), ninguém… vai conseguir apagar ou substituir o que já tive (ou senti que tive) quando fui (ou me senti) de alguém.

O sentimento de abandono emocional (quem achávamos que gostava de nós, afinal não gosta e foi-se embora das nossas vidas), transforma muitas vezes as pessoas em prisioneiras do passado, “nunca me vou esquecer disso” (se diz que nunca vai… cuidado porque as palavras que nos saem pela boca, também nos entram pelos ouvidos), impedindo-as de voltarem a acreditar nos outros, voltarem a sentir o que desejam, o que necessitam… mas acima de tudo coloca-as na posição de se sentirem de ninguém… no fundo é o desamparo, a dependência emocional de alguém que já não está lá, já não se preocupa, já não telefona, não abraça… já não é o alguém que nós queríamos que fosse!

“Côncavas de ter

Longas de desejo

Frescas de abandono

Consumidas de espanto

Inquietas de tocar e não prender”

Sophia de Mello Breyner Andersen, in “Mãos”, 1950

Rolando Andrade

Psicólogo Clínico

Psicoterapeuta

Psicólogo do Desporto

Cédula profissional O.P.P 4365

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